A construção de uma ética amorosa
“o amor é o que o amor faz
[…] sem justiça, não pode haver amor"
No primeiro livro de uma série de três livros que nos apresenta Bell, o amor é generosamente posto à mesa. Generosidade é uma palavra que descreve bem Bell Hooks, pseudônimo adotado por Gloria Jean Watkins em homenagem à sua bisavó. A escrita generosa de Bell é uma marca registrada e que pode ser sentida em livros como “Ensinando a Transgredir — A educação como prática da liberdade” até os infantis “Meu crespo é de rainha” e “Minha dança tem história” pelo selo infantil Boitatá da editora Boitempo. O livro recém impresso pela editora Elefante “Tudo sobre o amor, novas perspectivas” fala sobre a perspectiva da ética amorosa abrindo alas com seu coração inteiro alinhavando as palavras como bálsamos de cura. Bell nos envolve num passeio para dentro, pro interior de nós mesmas/mesmos/mesmes.
Já nas primeiras páginas ela propõe uma reviravolta importante de perspectiva; aquilo que nos é apresentado como universal numa sociedade estruturalmente racista, misógina, patriarcal, capitalista — que é a de que o amor é um sentimento que acontece ou não aos seres humanos, como alguém que nasce com predisposição a enxaqueca ou dores de estômago. Bell, problematiza essa perspectiva de “cair de amores”, essa perspectiva onde topamos com um amor ideal, romantizado, com um príncipe encantando ou com a Bela Adormecida. Bell torce a perspectiva disso que chamam de amor nesta sociedade — um sentimento. Ela fala que amor é uma ação — uma ação que envolve trabalho. Envolve o debruçar-se sobre si mesmas/os/es. Definindo o amor como “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa” a autora une nossa dificuldade em definir o amor em palavras como uma forma de nos mantermos alienados do que realmente é o amor e sobretudo, em dar conta de que desconhecemos o amor verdadeiramente. E apresenta princípios que falam sobre o amor e são eles: cuidado, afeição, responsabilidade, respeito, compromisso e confiança.
É essa nova perspectiva, baseada na agência dos seres humanos em direção ao amor que estrutura o livro de Bell e é através de sua profunda e generosa ética amorosa que ela convida à nós para um passeio — que seguirá pelos vales de nossas próprias sombras. Penso que é necessário iniciar as jornadas individuais, mas a própria Bell fala sobre o aprender e perseverar no caminho amoroso, amando. Utilizando o amar como a força vital mais poderosa, como a alquimia mais transformadora diante do desamor ao qual estamos todas/os/es submetidos socialmente. Bell critica primeiramente as nossas formas de ensinar a violência e o abuso como amor. Diante de uma sociedade adultocêntrica, onde gerações e gerações de adultos se tornam adultos passando por uma infância de violência e abuso e crescem acreditando que ser violento e abusivo com seus filhos significa demonstrar amor temos a base de uma cultura que defende a violência, o desamor, a morte. Ao invés de defender a vida, o cuidado, o afeto, o carinho — o amor verdadeiro. Quando as formas violentas como aprendemos sobre amor se perpetuam por gerações e são estimuladas estruturalmente aliadas com o racismo, a misoginia, o patriarcado — há um grande abismo social de desamor ao qual somos submetidos coletivamente.
Esse é um dos temas que compreendo, assim como Bell, sendo um dos mais centrais nesse livro curativo. Convidar leitoras e leitores à refletir sobre a sua própria infância e aquilo que entendem por educação das futuras gerações passa, necessariamente, por uma revisão profunda dos princípios que nos compõe. Passa por um caminho ativo no amor, em construir-se como ser amoroso — em sustentar-se ao lado de uma ética amorosa. E esse caminho, é um caminho que se trilha internamente buscando empenhar-se ao máximo para promover o crescimento interno espiritual seu e do outro para o mundo. Também apresenta o poder, como ordem do dia no interior da sociedade patriarcal e não o amor. Assim como a violência e a morte em contraposição da vida e do amor como princípios coletivos de existência.
No capítulo Seja verdadeira com o amor — a autora nos convida a olhar pras mentiras que contamos mentiras essas que nos são também ensinadas através de uma moral mentirosa. É moralmente aceita a mentira e isso nos constrói em distanciamento com o eu e o outro. Aprendemos desde crianças que somos punidas/os/es quando tentamos contar a verdade. Essa forma de mentir, com algo que estrutura a sociedade e a educação e a moral, nos coloca frente a frente com as formas adultas de se colocar no mundo. É nesse capítulo que Bell dá algumas dicas sobre a masculinidade estruturada pelo o patriarcado e o lugar de poder assumido e sustentado pelos homens ao invés da construção cotidiana do amor. Também fala sobre a manipulação e as mentiras que as mulheres conta sobre sua fragilidade, como uma forma de sustentar um lugar de submissão no interior do patriarcado. As mentiras que contamos para ocupar um lugar de poder nos afastam imensamente da possibilidade de construir uma ética amorosa que segundo ela, só é possível através de um trabalho árduo interno e externo — movimento constante. Se o amor é a ser verdadeiro diante de si e construir um processo profundo de crescer em espírito de que maneira é possível fazer isso através da sustentação da mentira?
É também diante da possibilidade de construir vínculos amorosos de comunidade que é possível sustentar a amorosidade. E sobre o poder curativo de estar em comunhão, de unir-se em comunidade e do senso profundo que isso representa em nossa condição humana, social, cultural, e na construção e potência da ética amorosa, aprendemos socialmente no interior da monogamia que há um relacionamento central nas nossas vidas e esse relacionamento deve se destacar. No entanto, não questionamos, a maioria de nós qual a sustentação deste padrão. Construir laços de amorosidade em todas as relações e poder contar com uma comunidade e que o sentimento que despertam as amizades são “um vislumbre de amor redentor e comunidade carinhosa. Aprender a amar em amizades nos fortalece de formas que nos permitem levar esse amor para outras interações”.
Ao falar sobre solidão, ela nos apresenta um conceito que também torce as formas como estamos comumente acostumados a pensar e viver — o recolhimento. Como algo pacífico e que nos auxilia a construir o respeito da singularidade e aumenta nossa condição de vincular-nos aos outros em comunidade. Ela também trata o servir como algo central na construção do amor e da comunhão. O servir é algo socialmente construído a partir da perspectiva de que as mulheres devem servir aos homens. No entanto, essa forma patriarcal de estruturação social faz com que a importância do serviço seja atacada e que socialmente homens não aprendam sobre o significa e a importância do servir, do cuidado, do trabalho emocional que envolve viver em comunidade. Os homens aprendem a ser servidos emocionalmente e isso enfraquece os seus vínculos consigo mesmos e com a sua comunidade — e assim, com a construção de uma ética amorosa. “A disposição para se sacrificar é uma dimensão necessária da prática do amor e da vida em comunidade” faz lembrar uma frase profundamente difundida de Che sobre o revolucionário ser guiado por grandes sentimentos de amor” e tantos outras e outros pensadores e revolucionários que defendem o valor do sacrifício para a construção de uma nova sociedade.
Por último me parece extremamente pertinente falar sobre a vida e sobre a morte — ponto que nos é sensível num momento de pandemia. Hooks fala sobre como a morte e a violência é potencializada pela estrutura patriarcal, racista, capitalista. A morte é constantemente abordada e centralizada, não por menos, como um sentimento que nos causa uma sensação subjetiva de impotência extrema. E nos reconecta com a busca pela poder, com a busca por construir uma busca pelo poder para aplacar a sensação de impotência da morte quando, em realidade, a única coisa que nos reconecta à morte é a vida. E parece estranho essa concepção, mas a morte nunca esteve distante, mas o medo que ela nos causa fala diretamente sobre a construção do amor. Sentimos medo da morte porque sentimos medo de morrer sem ter amado. E é isso que socialmente não conseguimos encarar, nossa incapacidade de construir relações amorosas com nós mesmos, com os outros e com nossa comunidade — em comunhão. A morte nos relembra sobre a vida e uma vida bem vivida é uma vida de amor verdadeiro — um amor que busca a construção do crescimento interior/exterior. Nesse sentido, Bell conclui um livro que é um bálsamo. Um livro que nos relembra nossa capacidade de amar — porque amor é ação, construção. Amor não é um sentimento sobrenatural que não é explicável. É uma ação cotidiana, é uma ética na qual podemos firmar nosso ponto. Na qual podemos construir e estruturar uma vida de amorosidade. E por isso, falar sobre amor, diante desta sociedade que cultiva a morte, a barbárie, a violência e o abuso é algo tão incômodo. Causa muito incômodo. A dificuldade de cotidianamente viver uma vida guiada pela ética amorosa é imensa, e pode desanimar, muitas vezes. Mas é um caminho de profunda entrega, generosidade e pulsar. Leiam o livro de Bell, ela nos carrega por uma estrada potente e criadora, por uma estrada de libertação e comunhão coletiva. De cuidado, afeto e revolução pelo amor.